sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Apaixonada - Ana Kita

"O amor pode surgir como uma brisa ou uma ventania, mas nunca partirá sem ter sido tornado."
Ana Kita

Mãos suadas, risos constantes, sorriso permanente, olhos atentos. Mãos que arrumam o cabelo, risadas que não são tão motivadas, sorriso que não se pode apagar, olhos que não conseguem achar outro foco. Mãos nervosamente inquietas, risos freneticamente intensos, sorriso sinceramente feliz, olhos visivelmente constrangidos. Tão visível para os demais. Para todos e qualquer um além da bolha que nos cercava. (...)
Nunca fui boa em esconder. Achava bobagem, mania hipócrita, imposição social, difícil. Eu pensava que entre aqueles que sempre se deram tão bem não poderia haver mentira, nem máscaras, muito menos fingimento. Considerava que seria óbvio, que seria visto, que seria compreendido. Acreditava que haveria recíproca. (...)
Na minha família o predomínio sempre foi feminino. Os homens morreram cedo, e os que a idade não levou as mulheres os afastaram. Mulheres geralmente dominam. Nunca achei ruim. Os cardápios eram variados e a conversa durava muito. Eu me espelhava em algumas delas, criticava e prometia não ser como outras, e procurava semelhanças entre eu e as mais amorosamente bem sucedidas. Um dia percebi que os homens faziam falta. Não a elas, ainda que motivasse lágrimas e o cruel sentimento de solidão. Notei a falta nas minhas visões. Eu não conhecia o universo masculino, não tinha exemplos, mal tinha idéia do que faziam ou falavam.
Não culpo minha família, mas alguém que pouco ou nada sabia sobre os homens era de se esperar ser iludida. Ser enganada. Confesso ter sido extremamente ingênua. Jamais o vi como um príncipe nem seu Uno parecia um cavalo branco. O bombom que me dera nem por um único momento me soou como uma promessa, e o primeiro beijo não me libertou de um feitiço. Ao contrário, era seu jeito tão humano, tão repleto de falhas, tão exposto a erros, que me envolvia ao sublime e ingênuo sonho romântico.
Lembro-me com peso nos olhos de um episódio, ou por assim se dizer: do episódio. Ele havia me acompanhado até em casa, nos beijávamos apaixonadamente, e num ímpeto disse-lhe que o amava. Ele afastou meu corpo do seu, olhou-me nos olhos, talvez por entre eles, e me pediu desculpas dizendo que não podia falar o mesmo. Eu não reagi como era de se esperar, instintivamente disse-lhe que não precisava. Continuamos a nos beijar como se nada nos tivesse interrompido. (...)
Só com a água caindo sobre meu corpo e lavando minha alma, eu colocava o pensamento em ordem. Procurava lembrar o dia, aprender com as falhas e guardar o que havia de bom. Era também no banho que me manipulava. Depois de cada noite de prazer, quando a solidão voltava a ser minha única companhia, era no chuveiro que eu tocava meu sexo. Não buscava prazer, só queria a recordação. Num ato insano de tornar momentos eternidade.
No episódio, eu vi pela primeira vez a bondade e injustiça dos homens. Só anos mais tarde eu compreenderia que era natural ao homem ser bondoso não mentindo quanto a um sentimento, quando na verdade estava sendo injusto por estar com aquela a quem não pertencia seu sentimento. A memória calcula pelas lágrimas, que demorou muitos anos. Invernos demais.
Ignorância acreditar em igualdade, ainda que seja de postura ou opinião. Homens e mulheres são muito diferentes. Mesmo nós, tão amigos, tão confidentes. Ele mentia para mim. Era capaz de olhar nos meus olhos, pegar na minha mão, conhecer meu coração. Mas, nunca fora capaz de ser honesto com aquilo que era tão vivo quanto nós. Aquilo que ele próprio fez questão de extinguir. (...)
Ele próprio criara a bolha, e eu, boba, deixei que o fizesse. Ela nos protegia, nos envolvia, podia ser alguma coisa boa. Mas, enquanto ele não visse aquilo crescer dentro de mim, seria mesmo incapaz de permitir algo bom para nós. Ele nunca acreditou em nós. No seu mundo, além da bolha, havia ele, eu e aquilo. Éramos três elementos distintos e distantes. Só quando estourou a bolha ele viu que eu e aquilo não podíamos ser separados. A princípio, ele sorrateiro fugiu. Obviamente, assim que teve notícias de nós voltou para por um fim a tudo.
Quando voltou finalmente foi capaz de me ver, de visualizar aquilo e até do furacão que havia sido. Para minha surpresa, foi hábil para extinguir o amor, e com isso me restringir a nada. Pegou suas coisas, não fez questão de arrumar qualquer estrago que havia feito e partiu para não olhar para trás. Tornei-me seu nada quisto passado. Enquanto ele permanecia sendo objeto do meu amor e passava a ser minha maior lembrança.
Bendito tempo que cicatrizou as feridas, arrumou a casa, e até me aproximou das pessoas. Entre tantas pessoas fui renascendo. Lenta e silenciosamente. Recompus-me, não voltei a ser quem era. Impossível ignorar o que vivemos, escapar do tempo ou não aprender com a derrota e continuar vivendo. Um dia coloquei novas roupas masculinas em suas gavetas, uma nova escova no banheiro e hoje cresce um novo daquilo. Agora sou também amada.

Itajuba (Barra Velha –SC), 16 de janeiro de 2010.

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