domingo, 31 de outubro de 2010

Um texto que não terminou - Ana Kita

Eu também sinto pessoas assim.

   Eles não se conheciam, tinham coisas em comum, mas não sabiam. E tiveram um encontro. Não presencial e com poucas chances de sucesso. Ele insistiu, e uma conversa fora suficiente. Como um raio de sol certeiro que consegue acordar. Muito mais do que manter contato, numa primeira conversa adquiriam intimidade para milhares de repetições. Em poucas repetições conquistaram um ao outro de uma maneira a não mais querem a distância. Pelo contrário, quanto mais perto, quanto mais frequente, mais queriam. Num caminho poético, tocaram-se. Houve mãos e braços, houve lábios, contudo, houve mais, e esse mais ecoou. Ela, quase sem querem, tocou o coração machucado dele. Ele, quem sabe com intenção, abriu-a, desvendou-a, encantou-a e no fim a confundiu. Como contradição do amor havia o passado dele e o presente dela para afastá-los, havia as experiências e traumas, havia medo, havia diferenças e semelhanças gigantes. Poderia haver tudo para afastá-los, havia tanto para aproximá-los. Era mais dentro que fora, aquela sensação de destino. De que uma pessoa tão diferente de você é tudo de que você precisa. De que outros olhos refletem seus sentimentos. De que uma voz até então desconhecida passa a ser o melhor som a se ouvir. De que o calor de outras mãos são seu maior desejo. 
   Quiseram se afastar, inúmeras vezes. Discutiram, odiaram-se, tantas outras. E quase não entendiam, mas sempre voltavam a se ver, a se querer, a se entender. Era um ímã, ou amor, era algo que os atraia e os distraia para que o stress do dia-a-dia os fizessem brigar. Parecia uma boa canção tocada repetidamente, já conheciam todos os acordes, os tranquilos e os agitados, os admiráveis e os comuns, precisavam, queriam, viciavam-se em ouvir sempre mais. 

Ana Kita

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Poeminha sinestésico: Ex

- uma maçã, por favor?
pra tirar o gosto,
- melhor, eu quero canela!
pra afastar o cheiro,
- aliás, poderia me ver cravos da Índia?
pra me encher de beijinhos,
- faz assim... Eu levo tudo.
- A senhora vai fazer um chá?
- não, é um kit de sobrevivência, contra fim.
- Não entendi...
- isso é porque você não deve gostar da sua ex.

Ana Kita

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Nossa liberdade - Ana Kita

   As pessoas lutam por sua liberdade, eu sempre soube, eu também queria. Foi então que eu me apaixonei. É, foi assim, sem planejamento, sem preparação, sem nem perceber. De repente todo meu sonho de liberdade foi se camuflando em união. Liberdade passou a ser estar com ele, sentir-me protegida, amada. A mão dele segurando a minha, ou os braços me envolvendo passaram a ser as melhores formas de liberdade. Ouvir o pronome possessivo antes de um apelido carinhoso é meu sonho de liberdade. Sinto-me livre e completa quando vejo que ele está com ciúmes, quando teme que um desacordo possa nos separar, quando pede que eu fique mais um pouco. Eu continuo voando sozinha (vez ou outra), mas os melhores e mais marcantes vôos passaram a ser os a dois. Aliás, ainda quando voo sozinha, já não me sinto só, se sou dele sempre tenho um ninho para voltar.

Ana Kita

sábado, 23 de outubro de 2010

Uma cozinha gelada - Ana Kita

   Ela falava as coisas mais sem sentido. Desenhava quadrados escuros em que gostaria de se abrigar. Estava sozinha, tão ou mais que qualquer outro. Já não havia o que dizer, nada mais deveria ser dito. Contudo, ela falava. Como quem não sabe - ou não quer - calar, como quem não tem nada mais a fazer. Ela comia. Deixava farelos cair sobre seu colo, sentia a gota de café escorrer por seu colo... E nada. Nada fazia para por ordem nem na sujeira, nem na cozinha. Não poderia arrumar as coisas ao seu redor se já não reconhecia seus limites. Poderiam julgá-la insana. Talvez. Faltava-lhe muito, realmente. Não sabia mais quem era, se um dia o soube. Não encontrava objetivos em sua vida. Não possuía qualquer sentimento que a levasse ao outro. Não fora presa ou liberta, fora rompida.

Ana Kita

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Livro: o envelope da alma do escritor

   Todo livro é um histórico médico do seu escritor (pois então sugiro que não leia um meu). Pode ser um diagnóstico do mal da sociedade, mas vai sempre ser a alma do poeta. Ainda que cheio de firulas desnecessárias e jorrando sangue de ficção. Ainda que eu mulher escreva como homem, ou eu solteira esteja numa esposa e mãe. Ainda que a juventude do escritor diga de anos em que ele nem vivia e suas personagens sejam velhas e experientes. Aliás, é mais provável ele se esconder nas coisas fáceis de mentir - já dizia Pessoa, o poeta é um fingidor -. São nos valores, ainda que invertidos, nas promessas, ainda que duvidosas, na escolha dos adjetivos, ainda que ultra românticos, que o poeta se revela. Não acredite também em mim, faço uso das palavras e nem me dou conta do poder que elas têm. Conto-lhe mentiras e é capaz de não notar.

Ana Kita

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Carta ao pai 13: Sensações conhecidas e novas sensações

Joinville, 18 de outubro de 2010.

Pai,
há dias que qualquer paisagem ou leitura me remete a você, sexta foi uma canção, sábado um passo, domingo um pai andando com a filha, hoje um texto. Acontece com frequência, algumas vezes dói, em outras sinto uma plenitude, aquela conhecida sensação de que você estará sempre comigo.
Tenho vivido muita coisa, sensações nunca antes imaginadas, amizades nunca desenvolvidas, intimidade nunca sentida. Embora, eu quisesse compartilhar contigo de uma outra forma, escrevo-lhe para tirar de mim, para quem sabe me sentir em contato contigo. Ah, pai, eu tento sempre ser forte, e muitas vezes fico orgulhosa de mim, mas nem por isso as lágrimas não insistem em cair ou não me sinta obrigada a abraçar forte um travesseiro. Tenho aprendido também muita coisa, de como lidar com as crianças, passando por salsa até "direção defensiva". Isto é, meu estágio na escola infantil e ensino fundamental vai muito rico em experiências (ganhei até um presentinho de Dia do Professor, além de muitos abraços), as aulas de dança de salão continuam me instigando e divertindo demais, e as aulas teóricas para tirar a Carteira Nacional de Habilitação me surpreenderam.

Escrevo-lhe mais, logo mais.
De todo coração,
sua primogênita, Ana.

domingo, 17 de outubro de 2010

Esquecer - Ana Kita

Tanta simpatia, mas só simpatia não basta. Seria talvez no princípio. Não hoje. Hoje muito é preciso. Pouco não me satisfaria. Fique só na simpatia, melhor nada para satisfazer. Melhor esquecer e deixar morrer

   Já não vejo a cor de seus olhos, fecho os olhos - estes meus - para tentar lembrar o tom exato em que eu mergulhava, mas já não o recordo. É assim o tempo todo. Eu me esforçando pra não esquecer o quanto fui feliz e as lembranças fortemente fugindo. Queria ser personagem de alguma telenovela ou de um filme cheio de flash-back, aí sim, eu seria completa ao lembrar cada detalhe, cada palavra, cada olhar. O toque eu sempre lembro, o jeito com que só ele me abraçava, tocava meus lábios, sorria, mordia os lábios. Quando estou muito sozinha, consigo lembrar também dos cheiros, o cheio endoidecedor que ficava nas roupas, nos dedos, em todos meus sonhos. Nesses momentos, em que estou repleta dele, penso que ele não deve se lembrar. Deve ter apagado com toda rapidez e prazer o que me esforço tanto para guardar. 
   Sempre fomos diferentes, embora com muito em comum. Tínhamos ângulos opostos sobre as mesmas visões, em tempos diferentes. O que mais nos aproximava eu não sei o que era. Algo como o mistério ou o inesperado. Algo que não se pode reconstruir ou inventar. Algo como o destino, em que poucos acreditam, penso que nem ele. Mas, que destino arbitrário era este que o levou tão rápido pra longe? Alguém me diria que se tivesse sido rápido demais não teria sido suficiente para marcar em mim, não seria suficiente para que eu pudesse escrever a respeito, nem passar noites acordadas ou sentir saudade. Talvez, tivesse razão. Ou a razão esteja nas lembranças que se apagam. Eu temo todo o tempo que tão forte quanto veio, quanto vivi, tudo isso parta. Ele já foi, o clima que ficava quando nos víamos tornou-se mero desconforto, só falta mesmo as lembranças se apagarem. 
   Quero crer que as lembranças não possam sumir. Que como não se pode mexer na história vivida, a lembrança também tem sua essência intocável. Mas, não o creio. Não creio, pois ele já esqueceu. Hoje sou só alguém que ele conheceu, em algum tempo, que tem o contato, mas não faz questão de manter. Esquece ele ou finge não saber, que sou alguém que viu seus olhos de perto, que os penetrou e os admirou. Sou só alguém que vai esquecendo, melhor que seja assim.

Ana Kita

Quanto aos fins e aos recomeços

   Antes de lhe conhecer eu me via um anjo, cheia de inocência e bondade. Quando lhe conheci me senti mulher, plena e amada. Mas, foi ao lhe perder que me tornei quem sou, calejada, aprendiz e ciente da vida como ela é.
   Eu podia ter me amargurado, engordado e desistido dos homens. Eu devia ter lhe dado o troco, teria logo me casado com um homem lindo, tido filhos e sido muito feliz. Posso não ter feito nada para que visse, é bem verdade, contudo acho que o melhor foi não mais lhe ver. É a distância que restitui os pedaços, fortalece a confiança, e permite que se possa recomeçar.
   Por algum tempo eu deixei de sonhar, tudo que minha mente projetava eram minhas lembranças, com mais frequencia as boas, ainda que me doessem tanto ou mais que as ruins.
   Um dia passou. Foi como se eu tivesse acordado numa nova vida. Eu ainda podia "consultar" nossa história, ela continuava ali, intocável, a diferença é que agora já não me tocava tanto. Eu podia seguir em frente, eu sentia. Eu segui.

Ana Kita

sábado, 16 de outubro de 2010

   O difícil não é aceitar que as relações tenham fim, nem que as pessoas mudem ou que o tempo as distancia. Toda e qualquer imensa dificuldade existe na intimidade se perder, em amantes tornarem-se conhecidos de mero cumprimento, em duas pessoas passarem a se constranger ao ficarem juntas quando já estiveram muito mais próximas (dentro). Sinto-me presa ao passado nesses momentos, uma garotinha imatura e nostálgica que o que mais deseja é o retorno. A lembrança machuca. Apague tudo que lhe faz mal. Não apague o que construímos, nem o que conquistamos, apague o espaço entre nossos corpos, a formalidade de nossas palavras, a postura sóbria que passamos a adotar - era só frente aos outros, quando conseguíamos, hoje é o natural.

Ana Kita

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Poema: Menino-verbo

Para Marcio, que me trouxe a reflexão.

ele se sentia
vazio,
um verbo
de ligação,
sozinho
nada,
atribuía
um significado, e
então se fazia.

Ana Kita

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Quanto aos cheiros e às saudades

   Tem dias que sinto seu cheiro na minha casa, não como a ilusão de um sonho, vivo, tão real quanto o sofá em que me sento. Ele não vem sorrateiro, não vai aos poucos se intensificando e depois vai embora sumido. Como você ele chega forte e intenso, parece me desejar por inteira, levá-me a loucura e depois parte deixando saudade. Antes eu podia senti-lo nas roupas, nos dedos, levava-me de novo a cena, trazia toda a lembrança e quase o toque. Hoje ele fica no ar, em cada cômodo, como se flutuasse frente ao meu nariz. Deixa-me presa aqui, e me enche de saudade. Eu não queria, preferia sentir cheiro de almoço sendo feito, no entanto, eu sei que em nossa história não sou eu quem decide. Meu desejo por vezes foi realizado, como sorte ou acaso. Por azar ou destino, vem seu cheiro aqui, enquanto você vive longe de tudo que já vivemos.

Ana Kita

domingo, 10 de outubro de 2010

Poeminha sentimental: 3 meses

são as histórias que me prendem

presa a nós
sinto-me livre
sonho, vivo e recordo
como menina que pode ou não crescer
(como mulher que tem a felicidade nas mãos)

Ana Kita

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Eu passo na sua rua. Você nunca está.
Eu assisto a saída da escola. Nem à aula você aparece.
Eu procuro nas quadras, nos becos. Só vejo seus amigos, que não sabem de você.
Atualizo meus e-mails. Nem uma mensagem sua: há tempos.

Onde você foi se esconder? Por que aparece nos meus pensamentos?

Ana Kita

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Acompanhante - Ana Kita

   Eu o vi correr na avenida, onde chovia. Ele sentia frio com sua linda camisa lilás, agora molhada, presa ao corpo. Parou num bar, aliás, foi ao bar. Não é homem de parar num lugar por um dilúvio qualquer, ele queria beber. O bar estava quente, e havia poucas pessoas, ideal para um chopp e seguir. Acabou bebendo dois, quem sabe pela companhia que não tinha. Entraram algumas pessoas e ele ficou absorto no caminhar de uma moça, seu salto agulha espetava os pensamentos também dele. Pegou um cigarro, observou a caixa como há tempos não fazia, abriu lentamente o lacre, a caixa, puxou um, tirou, colocou sobre o balcão, fechou a caixa, guardou-a no bolso da camisa, tirou do bolso - vai molhar, pensou -. Com o dedo fez o sinal de um isqueiro, o barman não entendeu, pegou o cigarro e repetiu o gesto, conseguiu o empréstimo. Era pura preguiça, devia ter um isqueiro no bolso da calça - sempre tem, mesmo quando "para" de fumar -. Acendeu o cigarro, deu uma tragada, depois observou queimar no cinzeiro. Era quase bonito, assim, queimando, virando cinza e caindo. Deixou o dinheiro sobre o balcão e saiu antes do cigarro queimar por inteiro. Esqueceu o cigarro, assim como a caixa. Tanto fazia, chovia, não iria fumar mais aquela noite.
   Eu o vi olhando as pessoas, discretamente, como não era comum dele. Viu uma mãe e seu pequeno molhado, sentiu certa compaixão, mas passou rápido, como negando ao seu sentimento paternal - quisera não tê-lo -. Parou em frente ao cinema, olhou o letreiro, os cartazes, havia uma sessão, a última, um filme interessante. Ficou tentado a entrar, como se chegar naquele momento fosse golpe do destino e devesse ele cumprir uma "profecia". A atendente era muito bonita e simpática perguntou a ele se iria comprar - "o filme já está para começar, senhor" -, ela conseguiu um gesto positivo. Ele entrou sorrateiro e vagarosamente, sentou-se quase na frente, numa saída - não gostava de passar pelos outros -. As luzes se apagaram e os trailes correram. Não havia quase ninguém nas poltronas ao redor, observou - melhor, sem cochichos, choros ou amassos -. O filme foi passando e ele quase se entretendo, embora o cansaço o atingisse sem receios. 
   Eu o vi bocejar, uma, duas, talvez três vezes. Antes que pudesse bocejar mais uma vez, adormeceu. O jeito de sentar, sempre tão relaxado - relapso -, facilitava e o filme com um ar de suspense trazia uma trilha sonora encantadora para embalar um sono leve. Acordou quase no fim do filme, com frio. A camisa já começava a secar, mas tinha a pele fria. Ao sair do cinema, tudo tão apagado, tão molhado e silencioso - ah, o silêncio das sextas-feiras chuvosas, pensou -. Ele, que também era de sair, viu os bares e boates cheios, mas naquela noite não estava para músicas e agito. Era o silêncio e os ruídos dos poucos carros velozes nas poças que ganhavam sua atenção. Ele tinha a minha, até chegar em casa, tirar a roupa, vestir uma bermuda surrada e deitar batendo o queixo - o banho fica pra amanhã, o chopp fez seu último efeito -.
   E, então, acordei.

Ana Kita