domingo, 29 de março de 2009

Afago reprimido - Ana Kita

Aproximei-me passo por passo, lenta e silenciosamente. O que eu realmente temia? Aquela casa, aqueles móveis, até o cheiro era o mesmo. Acho que a maioria das pessoas guarda boas lembranças da infância, muitos ficariam felizes por ver suas coisas de criança. Olhei seus olhos, fechados, mas não tive coragem de falar a princípio. O que podia me responder? Quando comecei a falar minha voz saiu trêmula. Esperei tanto por esse momento. De repente nada mais fazia sentido.
Por que reclamar das vezes que me proibiu de sair? Eu agora possuo toda a liberdade. Por que me desculpar das vezes que não lhe desejei feliz Natal? São só marcas do passado. Por que explicar meus motivos de sair de casa? Já faz tanto tempo, penso diferente hoje. Por que contar aonde eu ia quando fugia? Eu agora estou aqui, estou segura, não há com que se preocupar. Por que desmentir as grosserias que eu disse? Tanto a minha quanto a sua raiva já passaram. Por que avisar dos meus planos? Nunca fez diferença, sempre fui vista como a rebelde. Por que lembrar da falta que me fez? Não tem como voltar, passou. Ambos sofremos e nada fizemos para que fosse diferente. Pai, olha pra mim! Eu agora quero os seus conselhos, pode dizer o que o senhor não gosta, não prometo nada, mas estou com saudades da sua voz. Pai, sempre esperei que o senhor me dissesse o que fazer, mas o senhor não disse. Fala agora, ao menos fala se tem orgulho de mim.
Mesmo quando eu fiz tudo errado, mesmo quando o senhor me repreendeu com o olhar, eu tentei acertar. Toda vez que eu tive dúvida foi no senhor que eu pensei. O que meu pai faria? Se falasse comigo, o que diria? Queria ter sido perfeita, perfeita pro senhor. Nunca demonstrei o quanto o idolatro, a importância que o senhor tem na minha vida, mas eu estou aqui, pai. Eu voltei, voltei para o seu lado, onde eu sempre quis estar.
Minhas lágrimas brotavam, molhando suas mãos. Enrugadas e frias já não podiam me dar carinho. Nunca haviam me dado. Por muito tempo estiveram sobre a mesa ao lado das minhas, segurando xícaras ou jornais, ocupadas demais para um afeto, uma atenção. Um dia abriram a porta da casa para que eu fosse embora e não voltasse. Hoje, quando finalmente eu retorno, não puderam abrir aquela mesma porta, talvez por isso eu as desejasse tanto, queria que me dessem seu aval. Logo mais, elas se cruzariam e nunca mais seriam vistas.

Outono, 2009.

-> Revisado em 4 de julho de 2010.

sábado, 28 de março de 2009

Tempo Perdido - Ana Kita

"Eu lhe vejo como uma menina", ele me disse. Pois bem, o que ele esperava que eu fosse? Qual aparência queria que eu tivesse? Quando ele passar dos quarenta sei que desejará menininhas, e elas não o vão querer. 
Hoje lhe contei sobre meus sentimentos, enquanto me olhava distante. Pediu que eu aproveitasse a juventude com as pessoas da minha idade. Não sou uma boneca, posso sentir! Eu o olhava nos olhos e ele fugia, segurou minhas mãos, beijou-as e desejou-me boa sorte. Falou tanto no meu futuro, como se eu não tivesse presente. Como se eu, uma lagarta num casulo, devesse esperar a fase adulta.
Não sou de vidro, pode me tocar! Tentei me controlar ao máximo, mas não contive minhas revoltas. Ele foi injusto e insensível. Teve a ousadia de me dizer que podia me machucar, tentei argumentar, afinal eu o desejo, mas foi em vão. Ele estava irredutível falando sempre em culpa, em medo, em eu me arrepender. Queria que ele se arrependesse de ser tão duro. Não sou criança, faço minhas escolhas! Ele conseguiu me calar quando riu, foi sarcástico. Disse-me que eu não sabia o que fazia, que eu não podia querer o que eu não conhecia. Odeio essa posição de superior, ele podia ser tão experiente quanto meu avô que ainda não teria o direito dessa prepotência.
Não sou de gelo, pode me amar! Eu podia ter falado por horas, ele não ouviu nada. Quando eu dei uma trégua, ele começou a repetir. Ainda acrescentou que seria egoísmo estar comigo, pois estaria me privando de experiências juvenis, assim como seria errado me enganar. Não sou uma parede, eu ouço, eu falo! Gritei com ele. Agora que a raiva passou me arrependo, mas ele parecia não me ouvir. Falava, falava e falava. No entanto, tudo que eu dizia não o tocava. Não esperava mudar sua opinião, seu "caráter", como ele se referiu, só queria que ele me entendesse. Desejava que ele se compadecesse e repensasse sua postura. Não consegui.
Amanhã ele deve falar comigo como se nada tivesse acontecido, talvez me pergunte se estou mais calma. Desisti de tentar convencê-lo ou pelo menos fazê-lo ouvir. Acho que é um defeito masculino essa falta de visão global. É tão difícil ver uma situação por ambos os lados? Enquanto ele teme se envolver com uma menina, eu preciso lidar com o afastamento do meu melhor amigo e a rejeição do homem que desejo. Fiquemos assim, finjamos que nada foi dito e continuemos amigos, claro, mais distantes, o tempo não volta.
 

Outono, 2009.

-> Revisado em 4 de julho de 2010.