domingo, 1 de fevereiro de 2009

Uma viagem de incertezas - Ana Kita

 Primavera, 2008.

Segurou meu braço e me pediu que ficasse. Eu já não podia. Ele não podia entender o que passava dentro de mim, e nem eu esperava que o fizesse. É tão estranho, passamos anos ao lado de uma pessoa, e de repente não sobrou nada. Nada. Dirigi-me à porta e só, dentro de mim não restou qualquer sentimento. Era como se tudo estivesse guardado num lugar difícil demais para encontrar.
Confesso que seus olhos mexeram comigo, foi como no início. Eu não consigo acreditar que alguém pode amar profundamente alguém que não sinta nada. Por isso, pensei que eu não podia desprezar profundamente alguém que demonstrava tanto amor. Logo caí em mim. Ele não me amava. Amava a casa, o lar que formamos, a rotina, o café pronto, as noites de prazer, as noites de conchinha. E eu também não desprezava tudo isso. Eu desprezava sua traição, seu descaso, seu machismo, seu conformismo, seus minutos para discutir, seus minutos para conquistar.
Chegando ao portão, olhei para trás. Vi a casa, mas enxerguei o mundo que conquistamos. 15 de agosto de 2001 às 5h30 da manhã entramos pela vez em nossa casa, eu, Nicole Pereira Fernandes, e meu marido, Douglas Fernandes. Alguns móveis ainda não haviam chegado, mas para um jovem casal isso pouco importou. Recusei-me a entrar no ritual de ser carregada. Douglas não se importou. Pedimos pizza de calabresa e camarão para estrearmos o novo endereço. Tudo parecia um sonho, minha casa, meu marido, meus vizinhos. Minha vida. Eu me sentia livre, como nunca. E nunca mais sentiria.

Era engraçado, ríamos sozinhos.Sentíamos num sonho, num sonho compartilhado. E assim passamos meses. Fiquei grávida. Que alegria imensa. Teríamos agora a comprovação da realidade, deixaria de ser um sonho, agora teria linearidade. Ficaria pra história Não aconteceu. Tive um aborto prematuro. Foi difícil, ele me olhava, nós nos olhávamos, e nenhum dos dois sabia que consolo dar. O que se diz?. Doeu, e passou. Bom dia, beijo. Boa noite, beijo. Bom dia, pressa. E entramos na rotina.
Cinco anos depois, mais um dia amanheceu e olhando o céu vi uma nuvem. Ela não me disse nada, nuvens não falam. No entanto, eu ouvi. Eu ouvi uma voz me dizer: O que faz aqui? Olhei o quarto, fui ao banheiro, era minha casa, onde eu deveria estar? Não era lógico estar ali? Não. Eu achei que não. Olhei o reflexo no espelho, mas não me encontrei. Eu era a imagem irreal do que tinha sido. Eu era uma esposa, uma jornalista frustrada, uma escrava de sonhos que não se realizaram e, não estavam sendo buscados.
Ouvi a porta bater e gritei da janela que esperasse. Assim, de pijamas, com o rosto amassado, disse ao Douglas que eu não queria mais. Que não devíamos ignorar, que devíamos seguir outra estrada, que aquela - não soube precisar há quanto tempo - havia acabado. Ele me olhou com os olhos úmidos, abraçou-me e disse: "Eu esperava que nós encontrássemos outra". Ele já sabia. Ele já tinha visto, por que não me havia dito? Fui eu que não ouvi? É possível, se eu não enxerguei, por que teria escutado? Não encontramos, e por isso hoje vejo o portão. Vi seu rosto na janela, como nas fotos, Leoni tinha razão, parece um dublê. Eu sabia que não tinha aonde ir, não se procura uma estrada alternativa quando a viagem é óbvia. Mas, estava na hora. O posto para informações seria a casa da minha irmã, ainda que houvesse as crianças para brincar quando tudo que se quer é fechar os olhos, podemos usar o toalete, comer, e reabastecer. A viagem nunca termina. Hora de partir, todo fim é um começo.


-> Revisado em 2 de julho.