quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Manhã de mim - Ana Kita

   Às vezes amanheço só medo. Medo de que o relógio dele não mais o desperte, medo de que o apaguem de mim. Seria um dia sem cor se meu medo se realizasse, os cães não mais latiriam e ninguém passaria na frente da minha janela a fim de me mostrar se está frio ou calor. Eu tomaria banho como todos os dias, mas não cantaria. Tomaria meu café e não sentiria gosto ou prazer. Sairia pra trabalhar, talvez esquecesse o caminho, não daria bom dia às pessoas que fosse encontrando. Abriria a porta e a janela e acenderia a luz e ligaria o computador e leria o recado sob a mesa e atenderia o telefone e faria o meu trabalho. O tempo passaria sem eu notar pressa ou lentidão, só comeria quando desse a hora e meu estômago roncasse. No fim do dia, quando para casa eu voltaria, a televisão já não me agradaria, o sono viria e nem o livro de cabeceira conseguiria minha atenção. Assim seriam todos os meus dias, sem suspiro nem arroz doce.
    Foi só depois de ouvir Antes do Depois* que me dei conta do quanto preciso dos doces e dos fôlegos. Eu sempre os desejei, mas nem sabia como nomeá-los. Jamais parei para pensar como não podem me faltar - o que seria de mim se isso acontecesse? Eu nunca quis ser pastel de vento, mas me tornaria. Todas as leituras, conversas, risadas e choros naufragariam junto de todas as coisas sem importância que deixamos para trás. Canetas, guarda-chuvas e cinzeiros. 
   Há manhãs que junto do sol vem a vontade. Visto-me toda dela e saio à rua sorrindo. Mando uma mensagem dizendo que ele é muito amado, ainda que ele saiba. Compro um chocolate, canto a música do elevador. Aprendo tanto no trabalho que nem vejo a hora passar. Admiro o colorido do meu prato na hora do almoço. Decido voltar a pé para apreciar a primavera. À noite, passeamos de mãos dadas, sem destino nem hora para voltar, depois de um beijo revelo minha vontade. Ele ri, aquele riso tímido e cúmplice que só eu sei despertar. Pede-me paciência, prometendo que ainda seremos muito felizes. Eu também rio, confio nele. Dormimos com as estrelas sobre nossos olhos.

Ana Kita

*QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Antes do Depois.

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