sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Acompanhante - Ana Kita

   Eu o vi correr na avenida, onde chovia. Ele sentia frio com sua linda camisa lilás, agora molhada, presa ao corpo. Parou num bar, aliás, foi ao bar. Não é homem de parar num lugar por um dilúvio qualquer, ele queria beber. O bar estava quente, e havia poucas pessoas, ideal para um chopp e seguir. Acabou bebendo dois, quem sabe pela companhia que não tinha. Entraram algumas pessoas e ele ficou absorto no caminhar de uma moça, seu salto agulha espetava os pensamentos também dele. Pegou um cigarro, observou a caixa como há tempos não fazia, abriu lentamente o lacre, a caixa, puxou um, tirou, colocou sobre o balcão, fechou a caixa, guardou-a no bolso da camisa, tirou do bolso - vai molhar, pensou -. Com o dedo fez o sinal de um isqueiro, o barman não entendeu, pegou o cigarro e repetiu o gesto, conseguiu o empréstimo. Era pura preguiça, devia ter um isqueiro no bolso da calça - sempre tem, mesmo quando "para" de fumar -. Acendeu o cigarro, deu uma tragada, depois observou queimar no cinzeiro. Era quase bonito, assim, queimando, virando cinza e caindo. Deixou o dinheiro sobre o balcão e saiu antes do cigarro queimar por inteiro. Esqueceu o cigarro, assim como a caixa. Tanto fazia, chovia, não iria fumar mais aquela noite.
   Eu o vi olhando as pessoas, discretamente, como não era comum dele. Viu uma mãe e seu pequeno molhado, sentiu certa compaixão, mas passou rápido, como negando ao seu sentimento paternal - quisera não tê-lo -. Parou em frente ao cinema, olhou o letreiro, os cartazes, havia uma sessão, a última, um filme interessante. Ficou tentado a entrar, como se chegar naquele momento fosse golpe do destino e devesse ele cumprir uma "profecia". A atendente era muito bonita e simpática perguntou a ele se iria comprar - "o filme já está para começar, senhor" -, ela conseguiu um gesto positivo. Ele entrou sorrateiro e vagarosamente, sentou-se quase na frente, numa saída - não gostava de passar pelos outros -. As luzes se apagaram e os trailes correram. Não havia quase ninguém nas poltronas ao redor, observou - melhor, sem cochichos, choros ou amassos -. O filme foi passando e ele quase se entretendo, embora o cansaço o atingisse sem receios. 
   Eu o vi bocejar, uma, duas, talvez três vezes. Antes que pudesse bocejar mais uma vez, adormeceu. O jeito de sentar, sempre tão relaxado - relapso -, facilitava e o filme com um ar de suspense trazia uma trilha sonora encantadora para embalar um sono leve. Acordou quase no fim do filme, com frio. A camisa já começava a secar, mas tinha a pele fria. Ao sair do cinema, tudo tão apagado, tão molhado e silencioso - ah, o silêncio das sextas-feiras chuvosas, pensou -. Ele, que também era de sair, viu os bares e boates cheios, mas naquela noite não estava para músicas e agito. Era o silêncio e os ruídos dos poucos carros velozes nas poças que ganhavam sua atenção. Ele tinha a minha, até chegar em casa, tirar a roupa, vestir uma bermuda surrada e deitar batendo o queixo - o banho fica pra amanhã, o chopp fez seu último efeito -.
   E, então, acordei.

Ana Kita

2 comentários:

  1. Ana, que delícia essa "visão" que teve... um exercício muito interessante! (Em alguma realidade alternativa, essa cena ocorreu exatamente como pensou..)

    Beijos

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  2. Obrigada, Kawen! Passou a existir quando eu criei, quando verbalizei e toda vez que alguém ler ainda existirá. :D

    Beijos!
    Ana

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