terça-feira, 6 de novembro de 2012

Eu merecia

Ao conterrâneo Cunha.

         Eu merecia não conhecer certas pessoas, coisas. Sim, me desculpe os irmãos perante os deuses e os politicamente corretos, mas eu merecia. Merecia não ter marcas sombrias em meu passado, nem ter que dar de cara com aquele... Ah, melhor nem falar. Eu merecia não ter me dado ao trabalho de conhecer Esaú e Jacó (do Machado), pra não precisar pensar que nem nosso escritor maior acertou sempre. 
        Nem de relance queria ter visto os rostos assassinos de "Linha Direta" ou do "Jornal da Globo", aliás, nem mesmo os de ficção. Merecia ter dormido tranquila todas as noites. Queria nunca ter visto rostos desfigurados; ainda me lembro de um dia - ainda menina - passou por mim e minha mãe um homem que tinha o rosto como que corroído. Aquela imagem não saiu da minha mente por muito tempo. 
        Queria nunca ter conhecido a primeira versão de "Chapeuzinho Amarelo", não existe mais pra comprar e me encantou bem mais que as ilustrações de Ziraldo. Queria não ter visto um filme muito legal que perdi o começo e cujo nome nunca descobri. Penso que eu merecia mesmo não ter conhecido o câncer linfático da maneira que foi, nem dúvidas que nunca me responderão.
        Todos os bilhões de pessoas são muita gente. Deveria haver uma seleção mais apurada, tanta gente passou por mim e deixou simplesmente NADA! Não me entenda mal, longe de genocídio. Só queria conhecer melhor aqueles que me fizeram bem e deixar de me envolver com um ou outro que só passou sendo um rastro fulgás de destruição. Há quem tenha problemas e tudo bem, no entanto há quem seja problema, queira compartilhar problema, só fale em. Não nasci pra tanta benevolência. Não queria nem ter criado Lígias, Felipes e outros que das primeiras páginas não passaram.
       

Ana Kita

Obs.: Texto produzido a partir da proposta (dada numa apresentação de plano de aula de Jordane Graudin, no Curso de Letras) de criar uma crônica a partir de "O merecimento", de Rubens da Cunha.

2 comentários:

  1. Olá Ana,

    uma das coisas mais legais que podem acontecer com um escritor é ver seu texto reverberar, duplicar-se, transformar-se em outro pela mão de outro escritor. O meu texto é parceiro do teu, sem hierarquias, eles são amigos, nasceram do mesmo desejo de comunicar, de dizer as coisas que sentimos.

    Obrigado pela leitura e por ter levado essa leitura ao campo da escrita.

    abraços

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  2. Espero um dia ter o prazer desta sensação, por hora fico feliz de dar essa alegria aos escritores (e seus escritos), que como você, merecem.

    Eu agradeço pelo prazer da leitura e da inspiração!
    Seja sempre bem-vindo, Rubens. É uma honra!

    Beijos, beijos!
    Ana*

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