sábado, 6 de novembro de 2010

Começo de um conto - Ana Kita

   Eu que nunca lembro o começo de um filme ou de um livro, encanto-me ao adivinhar uma canção em seus primeiros segundos. Queria começar assim todos meus contos, como os primeiros acordes de canções inesquecíveis. Gostaria que nem todo leitor adivinhasse o que viria, mas se encantasse e recordasse. Não quero a monotonia do “era uma vez”, nem distanciar o leitor do conto narrando “numa terra não muito distante”. Quero a proximidade com a vida, um sujeito que aparece do nada, encontra uma mulher e desenvolve uma conversa. Ninguém explica quem são as pessoas que passam por você na rua. Quando você conhece alguém interessante não vai logo dizendo seu signo ou seus defeitos, não conta como seus pais se conheceram ou a origem do seu nome. Meus personagens não precisam ter suas vidas expressamente descritas, o passado deixo o leitor imaginar, quero o presente, a cena que nossos olhos apreciarão.
   Eu sugiro a cor lilás na camisa do protagonista e o leitor vai compondo sua personalidade, seu jeito desinibido e seu caminhar imponente. Eu dito uma fala e é o leitor quem sente a voz grave do sujeito. Eu escrevo sobre o olhar atento da mocinha, e permito ao leitor sentir seu pulso acelerado ou a canção que toca no bar. Mas, eu não disse que estavam num bar. E esse é o jogo, se estão sentados, se bebem, o leitor vai criando o cenário, que pode ou não ser futuramente destruído (ao ser por mim descrito). Se eles saem dali, a história vai se fazendo, e o começo já não é tão importante, mas sempre lembramos aquele primeiro olhar. Como a capa de um livro ou o primeiro beijo, é ele quem nos prende, mesmo que não nos diga muito, não se explique ou, seja passageiro.
   Eu abro mão dos fatos para falar dos sentimentos, e mesmo o leitor mais “superficial” imagina um beijo quando apenas digo que “se tocaram, na alma, nos corpos que estavam tão pertos”. Sente o primeiro toque dos lábios, a mão do protagonista acariciando o rosto dela e por aí vai. Se continuo a poetizar um leitor envolvido já sente o cheiro de prazer, o gemido e o gozo. Mas, eles ainda estão num bar, é só uma conversa envolvente num primeiro encontro sendo descrita. Isso escrito, isso para as palavras. Quem sente já viveu dias, encontros, e está no conforto do ninho de amor. Ainda que as personagens nem tenham sentido os sinos românticos ou suspirado o encontro.
   O meu propósito de começo é instigar o leitor, convidá-lo a criar comigo. Não costumo seguir Machado falando com o leitor, mas acredito que ele me entende. Até me segue. Na subjetividade das primeiras descrições ou na falta de informação, ele vai preenchendo as lacunas. Não segue um padrão ou um roteiro, cada leitura terá uma direção. Esta, geralmente, guiada pelas próprias experiências além do mundo literário. Um amor do passado ou uma professora do primário pode servir de inspiração ao leitor, assim meu protagonista pode sonhar em ser jogador de futebol e sua futura namorada ser pedagoga. E eu, que nem pensei numa profissão, viro apenas uma mediadora desse encontro entre leitor e personagens.


Ana Kita


Obs.: Este texto foi produzido a partir da última proposta de escrita no Círculo de Leituras e Escritas que eu participei este ano na Universidade da Região de Joinville, depois da leitura da introdução do livro de Amós Oz, "E a história começa".

2 comentários:

  1. Minha nossa, lá vou eu comentar novamente mas depois de ler não poderia deixar de escrever que se o seu propósito é instigar o leitor e fazer com que ele mesmo imagine certas situações, creio que sem antes ao menos de escrever o conto já conseguiu isso. Estou curiosa e gostaria muito de ler este conto. Fiquei mais uma vez estupefata não só pela maneira que escreve, mas como observa que certos detalhes fazem a diferença.
    Helenna M.

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  2. Helenna, quem sabe um dia até escrevo este conto, mas foi só um exemplo mesmo. A proposta era escrever sobre começo de contos para mim, e o texto que foi tomado como base também fazia uso de um exemplo, acabei criando meu próprio exemplo.
    Muito obrigada pelos elogios!

    Beijos, beijos!
    Ana

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