sábado, 27 de novembro de 2010

Textofonia 18: "Só pra dar a impressão"

   A amarela casa já não sorri, mesmo quando o sol brilha nela, parece não mais refletir a luz. Não tem mais alegria. Antes mesmo das crianças nascerem a família se desfez. Ficou lá a TV para suprir um som de casa cheia, mas não é ligada. Não digo que a dona seja uma mulher amargurada, é uma mulher sozinha, alguém que amou demais e perdeu. Ela se perdeu. Não buscou além dos muros outra razão pra viver, fez das paredes suas amigas e das fotos sua alegria. "São só histórias do passado", ela repete para si, mas algo dentro dela ainda não acredita, ainda não se dá conta de que ele partiu e não voltará.
   Quando acorda e vê uma luz acessa quer acreditar que ele voltou. Anda pela casa contente até se dar conta de que na noite passada havia decidido deixar a luz acessa, caso ele voltasse. Engana-se. Sabe ela que a luz ficou acessa, como fica todas às sextas e aos domingos, no bobo intuito de parecer uma casa cheia. Cheia só está de lembranças. Alguns dias de mágoas, outros de pura saudade, há ainda os dias em que tem esperança - enche-se dela, esquece até a dor. E os dias passam. Ele se foi há um ano e ainda parece que foi na última semana. As roupas passadas no armário, a torta de maçã pronta na geladeira.
   "Por que me engano?", questiona-se ela. E não sabe a resposta. Ninguém sabe. Os vizinhos, a família, todos já se perguntaram, já a indagaram, já tentaram resgatá-la. "Deixe essa casa", diziam alguns. "Arranje um namorado", sugeriam outros. Uns poucos amigos ainda a visitam, custa também a eles ver os porta-retratos cheios de uma alegria que já não existe. Ver uma mulher tão cor pastel que se ilumina num instante de lembrança e logo se apaga com a casa vazia.

Ana Kita

Inspiração: "Simples de Coração" - Engenheiros do Hawaii

5 comentários:

  1. Já dizia Vinicius de Moraes, "são demais os perigos dessa vida para quem tem paixão"...
    Ouça a música "Valsa Brasileira", do Chico Buarque, tem semelhanças com o texto, poderia estar aí tbm...
    Boa interpretação dos Engenheiros, curto muito!
    Beeijos!

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  2. Obrigada, Bruno!
    Linda canção, só confesso que não encontrei semelhanças. São olhares, e que bom serem diferentes, fazem do mundo redondo e da arte infinita.

    Beijos!
    Ana

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  3. Bem triste e melancólico o texto.
    Acho que estou sacando essa coisa de "sentir" o texto. HAHAHAHA

    Mas ainda sou um fracasso nisso, por isso meu blog não tem nada inspirador (ainda).

    Beijos.

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  4. hahaha Viu, Daniel? Sabia que conseguiria sentir! :D
    Sobre ser fracasso é maldade sua, não vejo assim, e inspiração pode vir da onde menos se imagina. Isto é, até mesmo do Sarcasmo Coletivo. rs
    Obrigada! :D

    Beijos!
    Ana

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