sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Ir para voltar - Ana Kita

   Pegaram o ônibus quase no centro da cidade, sentido norte, direção que realmente queriam ir, mas primeiro iriam ao sul. As mãos dela tremiam, a ideia fora sua, rezava sem voz que desse tudo certo, que o programa ao menos não fosse um desastre total. As mãos dele estavam frias, ainda não se sentia a vontade com ela, temia magoá-la, passar dos limites. Ambos entre tudo mais que pensavam, pensavam: o que fazer agora? Sentaram-se lado a lado, quase ao fundo, ela na janela, ele achou cavalheiro da sua parte. O ônibus partiu.
   Ele começou a falar, fez a típica pergunta, já feita quando se cumprimentaram: "Tudo bem?", ela riu e consentiu, mas não quis devolver. Ficaram um minuto em silêncio, enquanto ela tentava planejar o melhor jeito de começar, já sabia sobre o que dizer, temia como. "O que você achou quando fiz o convite?", perguntou já arrependida. Debaixo de suas madeixas louras ferviam ideias: "Eu não devia ter perguntado isso, sou muito burra. Capaz de ele achar que estou me referindo a eu ter dado a iniciativa. Eu não devia ter falado nada. Burra, burra! Isso que dá querer dar uma de moderninha, custava esperar ele fazer algum convite... Custava? Provavelmente seria menos insensato que esse seu, sua burra." Seus pensamentos gritavam tanto que ela quase não ouviu a resposta que ele deu, "Inusitado! Gosto disso...". "Ain, que amor! E agora? O que eu digo? Pensa alguma coisa, sua burra! Pensa, pensa...", mas ele continuou: "Eu morava aqui. Naquela rua... Faz muito tempo, foi a primeira casa dos meus pais, era só eu e minha irmã naquela época, mas eu adorava. Parece fazer tanto tempo, brincávamos na rua... Quem ainda brinca na rua?". "Pior que eu não sei... Eu nem cheguei a brincar na rua!", eles riram. "Assim me sinto um velho... Nem subiu em árvore?", "Você não é velho, muito menos eu subi em árvore. Mas, não é questão de idade... É preciso ter sorte. Ter pais tranquilos, morar numa rua sem tanto movimento, ter bons vizinhos... Não?", "Você tem razão... Seus pais não são tranquilos?", "Eu preferia não falar neles...", "Pois não falemos! Falemos de nós? Ou deixemos de falar...".
   "Ain, se for um sonho não me acordem, não me acordem. Nunca imaginei que evitar falar dos meus pais seria perfeito para tirar climão ou fazer clima, ain, que beijo...". O ônibus parou no terminal sul, o casal se afastou e ele se assustou, "Nossa, já estamos no sul!?", "É... eu julgava o trajeto maior...", "Agora é que ficou mesmo bom, ai ai... Tomara que comece a congestionar o trânsito, né, princesa?", ela deu um risinho envergonhado. "Princesa!? Misericórdia... Estava muito bom para ser perfeito. E agora eu digo o quê? Tomara que o trânsito flua bem, 'príncipe'!? Homens...". "Você está especialmente bonita hoje... Seu sorriso é tão lindo!"... "Ain, bem melhor assim, 'príncipe', mas, pára de alisar meu rosto, faz favor!". "O que você achou de mim quando nos conhecemos?", "Nossa, isso até parece pergunta que mulher faz...", ambos riram, "E mulheres não as respondem?", "Compromete, né?", "Opa! Isso quer dizer que a primeira impressão não foi das melhores.", "Ou o contrário...", "É um jogo de contradições ou de adivinhação?", "Contradições já bastam os sentimentos, e quanto a eles nunca se adivinha plenamente.", "Enigmática você. Admirável!", "Isso você diz agora, quando as pessoas começam a namorar tudo que não fica bem claro é motivo de discussão."
   "Eu fiz algo errado?" perguntou ele, pela primeira vez realmente sério. "Desculpe. Acho que não estou num bom dia.", "Queria fazer deste um bom dia, minha princesa!". "Aii, faz um favor: Cala a boca! A boca dele na minha tudo bem, a boca dele falando: pelo amor de Deus!". "O que foi? Fala pra mim... Dá pra ver nos seus olhos que não está gostando, e a ideia foi sua...", "Ah, legal, vai jogar na cara?", "Não, pelo amor de Deus, não me entenda errado... Só penso que se a ideia foi sua e algo está lhe desagradando, ou sou eu, ou algo externo que desconheço...", "Acho que estava errada, só isso.", "Errada? Quanto ao passeio? Eu achei que seria algo divertido...", "Também achei.", "Mas, não está sendo?". A pergunta dele ficou no ar por dois pontos, depois ou desceu junto a outro casal ou se desfez no silêncio. Ela olhava pela janela pensando no que fazer, dizer já não era importante. Ele se endireitou no assento e olhou pra frente, só restava esperar.
   Esperaram até o terminal norte, desceram, não precisavam falar, terminariam como planejado, ao menos o passeio. O celular dela tocou, ela olhou no visor, tremeu, atendeu. Entre monossílabos e resmungos ele disfarçadamente tentava pegar no ar do que se tratava. "Passo aí então, beijo...", ela desligou. "Não temos nada a ver. Nisso eu estava errada. Até foi divertido, tchau." e com um toque de bochechas eles se despediram. Ambos embarcaram, em ônibus diferentes, ele para sua casa, ela para a casa de outro, alguém que poderia tê-la como princesa.

Ana Kita

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