quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Partir - Ana Kita

Escorreu uma gota, da testa. Ela que já tinha os olhos úmidos, e dor por toda parte, não se deu conta de que a gota na testa não tinha a pureza das lágrimas. Entre pensamentos doloridos, aquela gota pesada e vermelha escorria. Quando chegou nos olhos é que ela viu, a dor havia ultrapassado as barreiras. Sabia que tinha sido definitivo, que o fim era irremediável, mas a gota vermelha era um grito no silêncio. O amor sempre tão frágil, qualquer ciúmes, qualquer oposição, não. Ela sabia que não era assim, nunca tivera o amor dele e por isso terminara assim. Sem despedidas, sem chance de voltar. A briga começara sem razão, um motivo qualquer que já esquecera, mas a mão que a afagou hoje se ergueu, revoltou-se, e cheia de fúria a feriu. Ela chorava, não pela dor física, fosse um corte, um traumatismo pela queda, fosse desmaiar a seguir. Chorava pela despedida não amável, pelos sonhos que não realizaria, pelos bens que perdia. Tudo se dividia a sua frente, e ela já era tão parte. Ele que partiu, como partiu o vaso no chão, como quem pega as roupas para não mais voltar. Acertou a cara dela com a grosseria da palavra - galinha. Não comeu o jantar preparado com tanto carinho, não cedeu a ela de joelhos implorando que ficasse. Ergueu-a pelos braços, cuspiu sua raiva na cara, e a empurrou. Se ela caiu, problema dela, pensou ele. Partiu, imaginando que ela também poderia partir, umas vértebras com azar. Bendita hora que não tiveram filhos, foi seu último pensamento sob a gota vermelha.

Ana Kita

2 comentários:

  1. Que forte essa cena Ana. De um lado, a violência do agressor, do outro a sensibilidade da vítima... estava ouvindo uma trilha sonora e o teu texto combina com ela. Se chama "Revelação"... tudo a ver né? Ouça por aqui: http://www.lastfm.com.br/music/Daikirai/Deliberate+Distortion%3A+Synesthesia+OST/Revelation#

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  2. Obrigada, Kawen!
    Uma forçada de realidade vez em quando é bom, creio eu. :)

    Beijos!
    Ana

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