sexta-feira, 15 de abril de 2011

As histórias de Vovô - Ana Kita

   Na noite anterior, Vovô me contou algumas histórias de que Vovó reclama, as da guerra. Prometemos guardar segredo, afinal Vovó e Mamãe não entendem nossa paixão por História. As histórias de Vovô, contadas pelo pai dele, que viveu na guerra, fazem parte da minha herança, quero conhecê-las todas, são demais. Desta vez, Vovô estava sentimental, até contou de batalhas, mas dizia de "ciscos" nos olhos dos soldados ao encontrarem adolescentes entre os atingidos, e terminou falando que os soldados usavam as noites sem combate para olhar as estrelas e orarem por suas famílias. Senti um arrepio. Fiquei imaginando o quanto as estrelas ouvem sobre o amor e a saudade.
   De manhã, pedi ajuda a Mamãe para encontrar dados da guerra na Rússia, queria saber dados mais "certos". Confio no Vovô, mas aprendi na escola que as informações passadas de "boca-em-boca" vão se alterando com o tempo. Mamãe não gostou muito, mas até me ajudou. Um dia desses, no jornal, ela ouviu uma psicóloga falando que é importante responder às crianças, mesmo quando se acha que "não deviam saber". Acho que mexeu com ela. Eu estava super empolgado com os números, milhares de guerreiros, milhares de mortos, quilômetros e quilômetros invadidos e centenas de cidades abandonadas, quando o telefone tocou e Mamãe ficou pálida. Ela desligou o telefone e eu continuei falando, mas ela já não me ouvia. Então, ela me abraçou com aquele olhar de adulto que não sabe o que falar e chorou. Eu fiquei preocupado, disse que a amava, algumas vezes ajuda, mas dessa vez parece que piorou.
   Ficamos em silêncio uns minutos, que me pareceram enormes, até ela me soltar, sentar do meu lado e escolhendo as palavras a dizer: Meu amor, o Vovô está no hospital. Perguntei o que ele tinha e ela não me respondeu, ficou naquela de amenizar tudo e disse apenas: Não é nada grave, se Deus quiser amanhã ele volta para casa. Não acreditei muito, mas segui o conselho dela de ir ao meu quarto e escrever uma cartinha pra ele (ela entregaria à tarde, quando eu estivesse na escola, e ela fosse visitá-lo). Fiquei pensando naquilo que Mamãe disse, os adultos sempre dizem, mas pra mim não parece fazer sentido: "se Deus quiser". Não que Deus não queira, mas não é uma questão dos médicos trabalharem direito? Do remédio fazer efeito? Do Vovô ficar bom? Não sei bem como Deus pode fazer o Vovô voltar amanhã ou só depois. Sei que não é hora de perguntar, Mamãe choraria e iria explicar mil coisas sem me responder realmente.
   Na carta escrevi que à noite eu olharia as estrelas e pediria a Deus que ele voltasse logo pra casa. Prometi que dormiria cedo, mesmo que a Vovó não fosse substituí-lo com as histórias. Terminei dizendo que o amava muito e que era só convencer a Mamãe a me levar no hospital, se ele quisesse minha companhia. Ano passado fiquei uma semana no hospital e sei como podem ser chatos.

Ana Kita

7 comentários:

  1. Lindo texto.
    Gostei da explosão de sentimentos, do embate entre crença ou descrença, ali no finzinho.
    Beijos!

    ResponderExcluir
  2. "Fiquei imaginando o quanto as estrelas ouvem sobre o amor e a saudade."

    Que linda essa frase!

    "achamos que "não deviam saber", acho que mexeu com ela"

    Achei estranho essa vírgula ali... a pausa/troca de idéia não deveria ser maior? Não ficaria melhor um ponto e vírgula ali?

    Que desatento eu, só fui entender o lance dos "ciscos" quando li pela segunda vez :p

    Gostei muito de como imaginei a narradora, uma menininha com cerca de 10 anos... acertei?

    ResponderExcluir
  3. Obrigada, Philipe! Não fazia parte da ideia inicial, mas gostei do encaixe. Acho que especialmente no universo infantil há muito disso (e muitas vezes incompreendido pelos adultos).

    Um menino ("fiquei super empolgado"), mas pode ter cerca de 10 anos sim, ou menos, talvez.
    Sobre a frase, também gostei, eu também me pego me imaginando. rs
    E com sua crítica concordo, hoje de manhã reli o texto e achei que a pausa é sim maior (coisa de quem lê em voz alta). Farei a mudança por um ponto. ;)
    Obrigada, Kawen! :D

    Beijos, beijos!
    Ana

    ResponderExcluir
  4. E eu tinha apagado o "menos de dez anos, acertei?" hahaha

    Mas nossa, eu não tinha percebido o gênero do narrador na primeira vez que li...

    ResponderExcluir
  5. hehe
    Normal, Kawen! Ficou bem sutil mesmo! ;)

    Beijos, beijos!
    Ana

    ResponderExcluir
  6. me deu saudade de meus vôzuinhos e vózinhas.
    conheci apenas 3 deles, e muito pouco, pois perdi-os quando era jovem.
    essa relação avós/netos é das mais bonitas.

    um bjo

    ResponderExcluir
  7. É mesmo linda, quando saudável.
    De qualquer jeito é de se sentir saudade, penso que até pra quem nunca teve. hehe Lembra-me muito a literatura infantil.

    Beijos, beijos!
    Ana

    ResponderExcluir