terça-feira, 3 de maio de 2011

Paixão auditiva - Ana Kita

   Há seis meses todos os dias, ela ligava o rádio dez minutos antes, só para ter certeza de que não perderia nenhum segundinho do programa. Nas primeiras semanas, ouvia o rádio lavando louça, ou passando roupa, depois não mais conseguia, sentava-se à mesa da cozinha e segurando o rosto ouvia aquela 1h30 diária. As músicas não lhe agradavam já no primeiro mês, a partir do terceiro mês lhe chateavam profundamente, mas ela não se importava. Queria, inclusive, que aquela hora e meia se estendesse pelo dia todo. Depois de ouvir, caso não tivesse muito trabalho (e raramente tinha acumulado), deitava-se, mesmo sem sono, só para a tarde passar mais rápido e o dia seguinte amanhecer "antes".
   Durante a noite também ouvia o rádio, mas em outra rádio, numa que tocavam suaves canções antigas, que lhe agradavam bem mais que as vespertinas. Por sorte, quase a noite toda só duas ou três vezes as músicas paravam, para uma propaganda ou dizer a hora. Tecia seus trabalhos com agilidade e cuidado, deles vinham toda sua renda há três anos, desde quando o irmão casou. Os pais moravam no interior, cuidavam de uma pequena fazenda e lá queriam morrer, ela partiu bem nova com o irmão que viera fazer faculdade.
   Todas as manhãs eram iguais, dormia até perto do horário de almoço, já que passava a noite trabalhando, fazia seu almoço - sempre variado, como a mãe ensinara para ser uma boa esposa -, levava as costuras até a sócia (que as vendia) e voltava para escutar o rádio. Não sabia como aconteceu, mas por acaso ouviu aquela rádio regional e o novo radialista a encantou. Era a voz mais sonora que já tinha ouvido, tão grave e imponente... Apaixonante! Dito e feito, a paixão já durava seis meses, não revelava a ninguém, sabia o quanto insensato podia parecer. Tentava se convencer de que não era paixão, afinal nem era pelo que ele dizia, não falava nada além do nome e compositores das músicas, era a voz, o jeito que falava... Ah, todo dia, naquele mesmo horário, a paixão voltava ainda mais ardente.
   Até que no final de um programa, ele disse: "Bom, ouvintes, muito obrigada pela companhia, mas hoje é meu último dia aqui na rádio. A partir de amanhã vocês terão um novo e mais completo programa. Boa tarde." E ela ficou sem chão. O que fazer sem seu amado na tarde seguinte? Nunca mais? Pensou em ir na rádio, pensou em ligar, por aquela tarde só chorou. E no dia seguinte, como se tivesse esquecido, ligou o rádio, no mesmo horário. Então, uma voz sedutora fez propaganda do novo programa. Ouviu e... Apaixonou-se, ótimas músicas, maravilhoso locutor, encantadores comentários!

Ana Kita

2 comentários:

  1. Que belo isso.
    Nada é imutável, corretíssimo.
    Beijos!

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  2. hehe Philipe e seu poder de sintetizar minhas narrativas! Exato! ;D
    Obrigada!

    Beijos, beijos!
    Ana

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