segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O rosto da fotografia - Ana Kita

   Levanta sorrateira da cama, procura não fazer barulho, não quer acordar ninguém. A noite anterior foi difícil demais, ninguém há de querer levantar tão cedo. Vai até a escrivaninha e pega, mesmo no escuro, o porta-retrato ao centro. Volta à cama, acende o abajur e admira o retrato. Por essa madrugada aquele sorriso forçado é o melhor conforto que poderia receber. Adormece com a ingênua certeza de que tudo ficará bem.
   Na manhã seguinte o sol já está alto quando a casa se acorda. Talvez nem mesmo tenha dormido, mas enfim, levanta-se. O ritual matutino se sucede lentamente, como se todos temessem o desenrolar do dia. Ela é a primeira a tomar banho, privilégio de ser "visita". Prepara a mesa do café, toma um copo de achocolatado e se dá por satisfeita. Desde ontem ninguém por ali parece ter fome. Meia hora depois o pai desfaz a mesa, quase intocada. O silêncio de quem quer dizer algo, mas não sabe o quê se instala na mesa, e logo parece percorrer a casa toda, pressiona-os. De repente o silêncio é bruscamente cortado pelo agudo toque do telefone.  Ela se levanta, o pai olha a esposa, a mãe parece que dirá algo, cala-se. Ela atende com a voz trêmula. Ouve quieta o que a voz profissional fala do outro lado da linha, agradece, diz que logo estarão "aí" e desliga. Ela coloca o telefone na base e se vira para a mesa. Seu semblante está tranquilo, mas os olhos brilham cheios de lágrimas. No rosto da mãe também escorre uma lágrima. O pai, menos convencido, questiona o que lhe disseram.
   Nem o pai, tampouco a mãe, tinham dúvida de onde era o "aí". Ambos sabiam que estavam inclusos entre aqueles que junto dela iriam para lá (ou "aí"). Embora não pudessem afirmar quem falava ao telefone, tinham como certo do que se tratava. A mãe levantou, já com o rosto entregue às lágrimas, e lentamente, como se os pés pesassem naquele dia muito mais que o normal, andou até a porta do quarto. Finalmente a moça respondeu dirigindo-se aos dois. Precisavam se arrumar e rapidamente ir ao hospital, o médico queria lhes falar, a enfermeira informou que o quadro melhorava. A mãe esboçou no quarto um sorriso, buscou um vestido sóbrio e rapidamente estava pronta na sala, batia o pé enquanto aguardava. O pai não demonstrou nenhuma reação, era mais contido, sempre o fora, já estava vestido, escovou os dentes e arrumou com gel seu penteado habitual.
   Ela foi ao quarto, trocou a roupa, incumbiu-se de levar um pouco de cor, de vida. No banheiro, maquiou-se, não sobrecarregou os olhos, nem passou batom, mas queria parecer o mais saudável e alegre possível. Voltou ao quarto por mais um breve momento, pegou o porta-retrato entre o lençol e o recolocou no centro da escrivaninha. Admirou os outros retratos, parou no retrato dela há alguns anos, tocou-lhe e lembrou-se do tempo. Não o tempo que a separava da moça sorridente na areia, mas o tempo que os pais deviam estar lhe esperando. Pegou a bolsa e a levou como estava, embora estivesse mais cheia que o necessário.
   Chegaram ao hospital quase uma hora depois da ligação. Havia mais trânsito que o esperado para manhã de segunda-feira, isso porque já era hora do almoço, mas nenhum deles se teve ao horário. O médico não tardou a chamá-los para sua sala, pediu que se acomodasse, cumprimentou o pai, e olhando profundamente nos olhos da mãe começou a falar. Entre termos médicos e seu profissional jeito sisudo, o essencial tentava ser compreendido pela família. Quando ele deu uma brecha na explicação, ela achou que ele terminara, perguntou, então, se poderia vê-lo. O médico consentiu com a cabeça, e ela foi, sem nem perceber que o médico voltava a falar sobre o "estado do paciente".
   Saiu da sala um pouco bamba, odiava aquele jeito distante e decorado de falar. Perguntou para uma enfermeira onde devia ir, e sem dificuldades encontrou a porta que devia entrar. Entrar? Por um momento, teve medo de encará-lo, talvez preferisse pensar só no rosto sorridente da fotografia. Mas, e a cor que vestia? A vida que buscava trazer seria inútil se não o encontrasse. Entrou. Como já sabia, no último leito a esquerda ele parecia dormir. Aproximou-se, quase sem ver os demais pacientes, apoiou-se na barra de segurança da cama, sentindo que seu corpo não conseguiria se manter de pé. Ele abriu os olhos e ela encontrou forças naqueles olhos repletos de vida, contrariando tudo ao seu redor.
   "Você está tão bonita..." - falou a voz fraca que vinha da cama.
   "É para você... é sempre para você."
   "Então, tira uma foto... Uma foto nossa."
   "Aqui?" - espantou-se ela.
   "Onde mais? Só me prometa que continuará sempre assim, linda.Você me..." - por um instante a voz foi mais firme, mas uma falta de ar interrompeu o pedido.
   "Prometo. Eu lhe prometo..." - a voz dela foi embriagada de emoção, mas tateou a bolsa à procura da câmera. Por sorte, ou pela pressa, a câmera estava ali. Parou um instante, podia mentir que não trouxera e se livrava de fotografá-lo tão... Já não sabia como defini-lo. Achou melhor atendê-lo. Tirou o flash, não devia incomodar os demais "pacientes". E os fotografou. Não conferiu a foto, sabia como ninguém fotografar a si mesma. Deu-lhe um beijo na testa e pediu que se cuidasse. Ela justificou sua partida precoce com a vontade dos pais de também o visitar.
   "Você é quem precisa se cuidar, aqui muita gente cuida de mim." - ainda pode ouvir antes de sair. Como imaginava, os pais, ansiosos, esperavam na porta. Ela passou por eles direto para as poltronas no final do corredor, a força para manter-se em pé parecia acabar. Quando sentou os pais já entravam na porta que há pouco ela temia entrar. Ainda com a câmera na mão, ela se ajeitou na poltrona e fechou os olhos por um instante. Em sua mente só conseguia ver o corpo fraco e o exagero de aparelhos ao seu redor. Uma enfermeira passou, estava atrasada para entregar uns medicamentos, nem deu pela moça pálida sentada de olhos fechados e câmera na mão. Ela abriu os olhos, ligou a câmera e conferiu a última fotografia. Os pais já paravam em frente a ela, quando ela esboçou um tímido sorriso. A mãe chorava compulsivamente, ela os olhou questionadora.
   "Ele se despediu. Ele se despediu de nós..." - sussurrou a voz chorosa.
   "Mas, o médico não disse que ele está melhorando?" - contestou a moça.
   "Os médicos não sabem de nada. Ele sabe..." - falou o pai, com lágrimas nos olhos.
   "Olhem essa fotografia!" - e os três pareceram hipnotizados pelos sorrisos da imagem. Não fosse o fundo hospitalar ninguém poderia crer a situação em que a foto havia sido tirada. Alguns minutos depois de a família, agora sentada, ver médicos e enfermeiros apressados passarem, o médico se aproximou e informou o "óbito do paciente". O profissionalismo da voz do médico caiu por terra, quando ele, lendo na ficha, falou o nome do "paciente". Informação à família errada.

Ana Kita

Nenhum comentário:

Postar um comentário