quinta-feira, 17 de junho de 2010

Marido Identificado - Ana Kita

Um crachá. Um crachá faz toda diferença. De uma pessoa qualquer a alguém com direitos e deveres. Alguém identificado, alguém com livre acesso, alguém respeitável. Com crachá posso, com crachá estou disponível, com crachá sou visto, com crachá sou querido, com crachá sou parte - essencial.
Quero pegar a lotação de crachá. Chegar em casa e ser o primeiro a jantar. Quero usar o banheiro e ter meu banho demorado. Com meu crachá hei de me deitar. É possível que minha esposa me julgue louco, contudo ao entender ela me desejará ainda mais. Serei o rei da cama, ela irá querer a mim e ninguém mais. Se estou com meu crachá eu posso dominá-la, tirar sua roupa, beijá-la e falar tudo que eu quiser. Minha mulher vai gostar tanto de mim com crachá, dirá que é minha, fará tudo para me agradar. Abrirá suas pernas e mostrará que eu posso tudo de crachá. Seremos amantes por horas a fio sem cansar, desejo sempre renovado. Depois de múltiplos orgasmos dela e diversas ejaculações minhas, dormirei exausto com meu crachá.
   De manhã ganharei café na cama. Não é regalia de ser alguém com crachá, é agrado matrimonial pelo marido excepcional que sou de crachá. Meus filhos virão alegres pular em minha cama, questionarão sobre o crachá e se inflarão de orgulho ao entenderem que o pai é alguém de crachá. Brincaremos livremente e só nos despediremos porque filhos de alguém com crachá também devem frequentar às aulas. Tomarei meu banho, colocarei uma roupa apropriada a um homem de crachá. Beijarei minha companheira sorridente e partirei ao ofício.
   Não volto para casa. Vou ao bar com meus amigos, noite de quarta, sagrados futebol e cerveja. A risada é geral devido ao crachá, nem dou-me ao trabalho de tentar explicar. Depois de três garrafas os rapazes esquecem a piada, preocupam-se com o final zerado do primeiro tempo. Eu ofereço para pagar as próximas e eles descobrem que serem amigos de alguém com crachá traz certas vantagens. Bebemos. Bebemos para esquecer o gol contra nosso timão. Bebemos para comemorar o empate. E no fim mal lembramos do outro gol a nosso favor. É começo de campeonato e final de mês: expectativa grande, muitas possibilidades e o mínimo de dinheiro.
   Tanto os menos embriagados quanto os mais, como eu, voltam a pé para casa. Estamos perto. Algumas das mulheres esperam-nos revoltadas, outras, como a minha, cansadas e ansiosas. Chego alegre, bambo. Um café forte e quente me espera com carinho. Bebo vislumbrando minhas duas, talvez três, mulheres semi-nuas. Instigam-me as cheias brancas coxas. O cabelo penteado para dormir. Ao final do copo preto tenho uma só mulher, só de calcinha preta. Deixo o copo na pia num ritual de que papai chegou exausto e não pode ser incomodado - meus rebentos já compreendem.
   Minha mulher pega minha mão, leva-me ao quarto. Deita-me na cama, despe-me. Eu ainda sou alguém de crachá: logo estou excitado. Ela sorri aquele sorriso lindo de esposa satisfeita. Tira meu crachá e começa a me agradar como homem comum. Homem comum que ela ama. Tenho acesso ilimitado ao corpo dela, pelo toque de meus olhos ela me identifica como seu homem e merecedor de seu respeito pois a respeito. Mesmo enquanto a enlouqueço com meu queixo apoiado em seu sexo ela me pede mais, insaciável dá-me sempre mais e retribuo por puro prazer. Sem deveres ou direitos. Só dois amantes, mais dois nesta madrugada.

Ana Kita

-> Texto escrito antes, durante e depois de Palestra inicial do Abril Mundo 2010. Nada como receber meu crachá com meu nome escrito.

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