terça-feira, 29 de junho de 2010

Carta ao pai 5: Lembrança e vida

Joinville, 29 de junho de 2010.

Pai,

ontem antes de dormir fiquei curtindo a lembrança mais viva que tenho de você em minha infância. Parece bobo ou até cruel, mas eu penso assim quanto a ela, sim. Volta e meia eu conto ela a alguém, e penso que nunca lhe contei. Estranho, né? Na verdade, não, pra mim não parece tão estranho. Gosto de contar, contar aos outros. Para os outros parece engraçado, divertido saber. Para você, eu sempre vi como errado. Não errado errado. Mas, errado. Acho que quando eu tiver meus filhos se eles pensarem algo assim, trarão a mim certa tristeza,  como se eu não tivesse marcado a infância deles positivamente. Mas, sendo eu quem lembra, digo que não é assim. Você marcou muito minha infância - minha vida, na verdade, mas, a infância também, é claro, o problema é a memória -, e, por acaso ou destino, esta foi a lembrança que mais marcou minha memória. Que posso eu fazer, pai?
Enrolei, enrolei, sem que ter dito a tal lembrança, não é? Desculpa, pai. Empolguei-me. Lembro-me do nosso apartamento, onde morei por tanto tempo, mas onde moramos por algum tempo. Um tempo curto e distante que o tempo quase apaga de minhas memórias. Quando falo a minha mãe desta lembrança ela quase se assusta, ela não lembra tão bem quanto eu. Mas, pai, a tal lembrança viva é você adormecendo no sofá (sofá-cama, se não estou enganada você levou a Curitiba anos mais tarde e até eu dormi nele) e seu copo com um restinho de café na estante. Lembro ou talvez eu tenha criado a ideia de eu ter pego seu copo e levado à cozinha. Já não sei, faz tanto tempo. Não sei se foi uma única vez, se aconteceram algumas vezes, ou se era mesmo frequente. Eu era muito nova naquele tempo, talvez nem conseguisse alcançar o copo. Penso que sim, gosto de pensar assim.
Ontem, à noite, enquanto eu lembrava e pensava em lhe escrever contando, deu um tristeza, confesso. Uma tristeza de querer e de lamentar não ter querido antes. Queria ter lhe perguntado sobre esta lembrança. Já que minha mãe quase não a compartilha, podia você, o mais envolvido, lembrar. Ou não, afinal você dormia. Mas, podia lembrar e eu queria saber. Devia ter lhe perguntado. Mas, pai, não se aflija, não. Eu mesmo já me conformei. Deixa assim mesmo. Só lembrança minha, coisa que conto por aí. Coloco em contos e lembro, mais ficção que passado. Acho que é sempre assim, pai. Vamos criando uma porção de coisas junto à memória. E não acho ruim. Fica tudo tão bonito. Uma mistura de paisagem e sonho. Grande repertório para livros e motivação de sorrisos. Meus, dos outros, e queria também que seu.

Escrevo-lhe mais, em breve.
De todo coração,
sua primogênita, Ana.

2 comentários:

  1. linda essa carta, ana! bem escrita e doída. Muito sensível essa lembrança: o pai adormecido, e o copo na estante, com um tanto de café. Coisa simples [e boba] para a maioria, né? Aí você fala essa coisa simples, repleta de saudade. E muda tudo. Gostei muito. :)

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  2. Que comentário mais lindo, Eduardo!
    É o tipo de sentir que me faz ter certeza de que adoro escrever e é isso que quero/preciso pra viver!

    Muitíssimo obrigada!
    Acho sensível sim, e precisa ser dito assim mesmo, simples, de todo coração repleto de saudade. hehe

    Beijo!
    Ana

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