quinta-feira, 1 de julho de 2010

Não lhe escrevo - Ana Kita

Mia pega uma folha de papel um pouco amassada, passa a mão direita tentando esticá-la. Segura uma caneta preta, aproxima seu rosto da folha. Antes de começar a escrever questiona-se em voz alta:
- Eu entregaria uma carta escrita numa folha amassada? Não quero entregar.
Começa a escrever:
“Joinville, 5 de junho de 2010.

Felipe,

Desculpe-me por lhe escrever. Não por estar escrevendo, nem pelo que escrevo. Não sei por que, mas caso seja necessário tente me desculpar. Você sabe que pode confiar em mim, nenhuma palavra que eu diga ou escreva partirá de mim com a intenção de lhe magoar. Pelo contrário, seria um imenso prazer se minhas palavras pudessem lhe fazer bem. Saiba que uma vez direcionadas a você, elas passam a serem salutares para mim.
Queria lhe contar uma história de duas pessoas, um homem e uma garota. Faz tanto tempo que não sei dizer quanto tempo já passou. Eles se conheceram por acaso, começaram a se falar ainda mais sem propósito e no fim já não conseguiam controlar o desejo de manter contato. Era verão, começo do ano... Uma vida inteira pela frente, duas. Tentaram unir suas vidas e não conseguiram. Não eram opostos, embora se atraíssem. Eram apenas diferentes, e não viam.
A garota via no metal dos dentes dele aqueles desejos de inovar, de se tornar outra, de investir e conquistar. Ela não acreditava, ou pensava que não. Engraçado, né? Tantas vezes se tenta negar os próprios sentimentos. O que você acha disso, Fe? Não é contra sua própria natureza? Sobre o que ele pensava eu não sei dizer. Penso que ele próprio se negava pensar ou concluir pensamentos.
Eles viveram em outra época, sentiram outras coisas, assistiram a outras novelas, algumas bandas até continuam as mesmas, mas eram outras rádios, talvez nem houvesse DVDs. Fe, fico envergonha em lhe dizer, mas eles permitiram ou até mesmo decidiram viver por instinto. Sim, mãos, sons, suores. Ela era feliz, e ele tinha problemas. Ela compartilhava sorrisos e ele calava seus lamentos. Ela sofria na solidão de um quarto escuro e ele festava em galpões barulhentos. Eles se amaram. Viveram o amor quase por completo.
Quase porque ele desistiu. Quando o sol estava nascendo só para eles, ele saltou para longe. Quis fugir, teve medo, ficou com vergonha de olhar nos olhos, mas disse a ela que o fim chegara. Os olhos dela foram cachoeiras por algum tempo, bastante tempo. Ele a procurou novamente, viveu ainda mais intensamente. Mas, o caminho já estava traçado, era a distância que os aguardava. Ambos negaram o esquecimento. E conseguiram, por... Por um tempo suficiente para marcá-los. Hoje é só isso, uma marca, duas.
Ficaram muito tempo sem se verem e quando se viram já eram dois estranhos. Sorriram aquele sorriso amargo de fotografia e partiram em direções opostas. Não se pergunte por que lhe conto tal história. Nem eu mesma saberia dizer. Se há algum propósito quero que fique neste parágrafo, um pedido. Peço, meu amigo, que não se afaste, que não se cale e que se lembre de mim. Nossa amizade é algo iluminado, não deixemos que o tempo faça dela uma só marca em nosso passado. Não precisa me escrever, mas me abrace quando terminar de ler.

Estarei sempre aqui.
Com todo meu carinho,
sua Mia."
- Não vou entregar. – dizendo isto a garota amassa a folha de papel.

Ana Kita

-> Proposta de narrativa com a personagem anteriormente criada, vejam-na aqui, em Língua Portuguesa 1, no curso de Letras. Tirei 9,5. Concordam? Gostaram?

4 comentários:

  1. Quantas cartas eu já escrevi, destinadas apenas a satisfazer minha vontade escrever.

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  2. Nós, aspirantes a escritores ou escritores, escrevemos, sem dúvida, milhares. Mas, todos as escrevem. Pena que muitas deveriam ser enviadas e não são. Quanto leitores se perderam, hein?

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  3. O "Mundo das Idéias Perdidas" hehehe... seria um tema a ser explorado, algo como "realidades alternativas"...

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  4. Teria muito a explorar, mas a maioria das pessoas prefere guardar esse tema. De preferência com cadeado ou com a certeza do papel queimado.

    Essas possibilidades do "se..." me faz lembrar sempre de duas músicas de que gosto muito "As cartas que eu não mando" do Leoni, e "Surfando Karmas & DNA" de Engenheiros.

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