domingo, 4 de julho de 2010

A pureza de outro músico - Ana Kita

   A você que me toca enquanto ele cantava.

  Um músico que tocava verdades da outra margem do oceano, sem alguém que o quisesse ouvir. Pedia aplausos e recebia, ninguém escondia o descaso. Eu o olhava nos olhos e ele não me via. Lembrou-me tanto de você. Talvez o sorriso verdadeiro. O olhar esperançoso. Quem sabe os cabelos latinos. A pele queimada de sol. A suavidade dos dedos nas cordas. Os acordes marítimos do violão. Tinha tanto de você. A camiseta branca como a dizer que a beleza está na simplicidade. Os tênis velhos como se pedissem para seres descalçados. A pureza com que cantava cada frase.
   Ele pediu a outro para tocar junto. É, assim como eu, ele se sente sozinho. Sob a luz verde ele também lembra um amor distante. Como você, ele tem o anelar coberto. É bonito, é alegre. Sozinho continua a cantar músicas que falam de amores perdidos. Ao contrário de mim, ele tem um amor para viver assim que a melancólica canção terminar. Eu peço só uma mais para que eu possa sonhar. Eu e você, personagens de mais uma melodia. Ele acende um cigarro. Para de fumar para continuar cantando, mas a magia já se desfez. Você continua distante e ele é só mais um cantor de bar. Um entre muitos. Um músico bom, toca com paixão, com verdade, não desafina e dedilha como se fosse fácil. No entanto, só você pode me tocar. Ele não tenta. Ele sorri e agradece meus aplausos, ambos sabemos que não é suficiente.
   Um palhaço me cumprimenta, desperta-me de meus devaneios. Não me liberta de você, nem poderia, nem eu gostaria. A canção, em outra língua, diz-me que não desista. Assim como eu e o cantor continuamos sozinhos. Num outro dia, num outro lugar, posso ter sua companhia. Mais uma música, dessas de cantar para sua amada em volta da fogueira. Ouvir o mar, assistir ao nascer do sol. Entre tantas canções que não me dizem nada, ao menos não as compreendo, eis que surge uma conhecida. De uma outra noite, quem sabe, para outro público, de outro cantor, em que meu coração já lhe pertencia. Você não sabia. Você, tampouco, escuta agora, e ele termina de tocar.

Ana Kita

5 comentários:

  1. a música tá muito muito presente em teus escritos. e isso tem surtido efeito musical mesmo, de ritmo. tá sendo maravilhoso!

    beijo.

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  2. O que me encanta, é esse povoado de personagens, esses tantos lugares que creio, na tua cabeça têm todos um sentido importante e estão, cada um, no lugar correto, como um lindo tabuleiro de xadrez onde não fazes questão de manipular as peças, mas apenas de entender o jogo...

    Além de literariamente lindo, é intrigante.
    E eu gosto muito disso...

    Parabéns, Aninha...sempre bom te ler!

    Beijos e ótima semana pra ti.

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  3. Muito obrigada, Ítalo!
    A música não podia faltar em meus escritos, ela vive em mim! :D

    Moni, quase chorei lendo este seu comentário! Que coisa mais linda! *-* Fico tão tão feliz que quase não caibo em mim! Que bom que intriga, além de emocionar, acho intrigar outra sensação essencial para estimular os leitores, não é?

    "sempre bom te ler", até me senti uma escritora agora! =D
    Muitíssimo obrigada, Moni!
    Ótima semana para você também!

    Beijos!
    Ana

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  4. oi, ana
    gostei!

    e gostei especialmente da dedicatória. Sintética e simples, mas cheia de poesia. Eu ia chamar de trocadilho, mas não soaria bem: é um belo verso. ^^

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  5. Olá, Eduardo!
    Que bom! :D

    Nós, amantes da literatura, sabemos que não há nada de mal nos trocadilhos, afinal, sem eles onde estaria a beleza dos poemas barrocos? hehe
    Muitíssimo obrigada!

    Beijos.
    Ana

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