quarta-feira, 5 de maio de 2010

Textofonia 2: Sábio amor passado

Fechos meus olhos e assisto ao nosso passado, cada carta, cada palavra, cada gesto, cada sorriso... Ele sabia me conquistar do tom da sua voz até o último beijo. Seu personagem, hoje distante, recorda-me mais um "mestre" da sedução que o par romântico da protagonista. Como ele veria minhas recordações? Penso que não lhe faria diferença alguma, e dói. Seu silêncio me machuca há muito tempo. Suas palavras nunca vão chegar, se é que elas existem.

Ainda me surpreendo com a insensibilidade humana.
Humano, ao meu ver, era justamente ter as capacidades sensíveis. Viver em sociedade, precisando, desejando o bem comum. Sentir a necessidade de se alimentar, mas ao ver um semelhante tão faminto ou mais, dividir o mínimo que se tem. Saber de lugares quase perfeitos para se viver e ainda assim tentar transformar onde se vive, em alguns casos, até ir a lugares quase impossíveis de se viver para ajudar aqueles que lá sobrevivem. Ter milhares de motivos para chorar, e tentar sorrir para ajudar um semelhante que chora. TER SENTIMENTOS! Os cientistas falam das capacidades de planejar, de se comunicar num código tão desenvolvido, de guardar... Eu pensava além, ser um humano me soava ser capaz de amar, de cuidar, de desejar, de ajudar, de sofrer, de entender, de perdoar.
Agora bate uma dúvida. (...) Melhor não compartilhar minhas ideias, são tão instáveis e adaptáveis. Penso que ainda acredito nesse ser humano completo, embora eu viva com muitos seres humanos aparentemente desprovidos de qualquer sensibilidade.

Ele sabia tanto, podia me ensinar tanto sobre mim mesma. Parecia adivinhar meus pensamentos só de me olhar, parecia compreender meus movimentos mesmo quando não os via. Eu ficava o admirando, calada. Tudo que eu pensava dizer me parecia pouco, incapaz de transpor em palavras tudo o que eu sentia. Ele parecia capaz de decifrar meu silêncio.
Eu nunca soube. Ainda quando eu implorava que me dissesse o que pensava, eu nunca conseguia acompanhar o que sentia. Quando ele decidiu - e apenas me comunicou - que só o que me daria seria seu silêncio, confesso, pensei que a razão de eu desconhecer os sentimentos dele fosse por ele não os ter.
Hoje não penso assim. O pouco que sei do conteúdo das cartas que ele poderia me enviar me faz crer que ele só não sentia nada em relação a mim.
Hoje ele sente muito por outra pessoa. Talvez seja o sol que hoje iluminou as ruas, mas nesse momento eu não vejo isso como algo tão ruim. Não posso julgar que eu não merecia os sentimentos dele, que a culpa foi minha, que fiz algo errado, ou que nunca terei alguém que sinta por mim o que eu senti por ele; as razões sentimentais vão além dessas regras comuns. Era para ser assim. E foi. Ele sabia, sabia inclusive que eu não conseguiria.

Ana Kita

-> Estímulo sonoro de: "Às vezes nunca" - Engenheiros do Hawaii (1992)

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