quarta-feira, 30 de junho de 2010

A menina em Laura

Laura vai ficando vermelha, angustiada. Braba, eu diria. Eu não quero. Não gosto da beleza que tem assim. Ainda que linda, sei que faz mal a ela. Ela me culpa. Quem não culparia? Talvez seja mesmo minha culpa. De hoje, do passado. É possível que eu tenha sumido com a menina. Mas, como eu poderia? Como matar quem amei? Não morre, não mata. Não se deixa de amar. Ela vive em mim, devia viver em Laura, mas vive em mim. Laura não sabe, talvez desconfie. Eu ainda a amo. Eu penso que é a menina que traz Laura aqui. Sim, a menina que já não vive nela, mas permanece em mim. É a saudade, a ausência, que ela sente sem entender.
Assustei-me. Laura disse que me ama. Agora, agora que já somos tão distantes. Agora que é mulher e que esquece a menina. Agora que tem os olhos cansados e os esmaltes por tirar. Agora que continua tão linda, tão segura de si, de coxas tão brancas e grossas, de olhos intensos e rosto angelical. Por que agora? Eu fico calado ao invés de perguntar. Ela não gosta. Volta a cantar, cantar para mim, para me atingir. “Toda noite de insônia eu penso em te escrever, pra dizer que teu silêncio me agride e não me agrada ser um calendário do ano passado” canta. E Humberto Gessinger canta dentro de mim. Não só agora, todo o tempo.
Continuo a agredir. Assim com o silêncio, assim cheio de pensamentos. Porque faz tempo, muito tempo. Porque ela agora é distante e mulher e linda. Porque continua sedutora e decidida e minha. Acho que sou eu. Sou eu quem não sabe como agir. Se eu continuo imóvel e em silêncio não é por maldade. Não é crime, é erro. É falha de ser humano, de quem muito quer e nada sabe. Ela vê, mas não quer entender. Eu também não iria, no seu lugar. Ela se aproxima meiga, como nunca vi. Não pisa firme em seu salto agulha. Não quer seduzir, quer abrigo. Mas, eu penso que não sei mais ser aconchego.
É quando seu corpo se aproxima do meu que volto a ter minha menina. Por um instante, de olhos fechados. Eu a abraço, eu a sinto, eu cheiro seu cabelo. Dou um beijo na testa e a perco, mais uma vez. Laura me olha preocupada. Pergunta se não vou lhe responder. Meu silêncio consente. Ela então muda a pergunta, num tom ainda mais inquisidor. Quer, a todo custo, que eu diga o que mudou. Se eu soubesse tentaria solucionar, seria mais fácil. Difícil demais explicar, peço que desista. Laura nunca desiste, e eu sei. Eu admiro.

Ana Kita

6 comentários:

  1. Vc parece ser uma pessoa muito carinhosa com as pessoas que ama, e tbm com seus personagens. Não sei se Laura é uma ficção, mas é um bonito texto afetuoso. Gosto de textos com um tom emotivo, e vc faz isso muito bem. Beijos!

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  2. Muito obrigada, Bruno!
    Laura é sim uma ficção, daquelas que nos (nós escritores e leitores) envolve por inteiros.
    Realmente esse tom afetuoso me pertence, especialmente em textos, e gosto de emocionar! :D Até porque eu me emociono em criar e imaginar... Como se as personagens passassem a existir dentro de mim!

    Comentário extra: Os homens que acompanham meu blog estão me deixando de cara! Nada como escritores para serem sensíveis e elogiar com uma fineza admirável! Só tenho a agradecer!

    Beijos!
    Ana

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  3. esses escritos sobre laura estão maravilhosos! ele propõem um pensar justamente sobre a questão dos personagens com seus "criadores". algo como um se libertar que está nas mãos do escritor - ou do leitor?

    óóteemoos!

    beijo!

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  4. Muitíssimo obrigaada, Ítalo!
    Não importa nas mãos de quem, desde que venha à tona! ;D

    Beijo!
    Ana

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  5. Menina, que blog lindo, como você escreve bem! E um livro, quando sai? Esperarei.

    Beijos!

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  6. Obrigada! Pretendo publicar, mas gostaria de começar com um romance, preciso de inspiração e oportunidade, quem sabe nos próximos anos.

    Volte sempre!

    Beijos, beijos!
    Ana

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